G1
No livro 'Jesus de Nazaré', Bento XVI diz que Cristo afirmou claramente sua divindade.
Para historiadores e teólogos, interpretação força demais o sentido dos Evangelhos.
O novo livro do Papa Bento XVI, "Jesus de Nazaré", coloca o líder da Igreja Católica no centro de um debate acadêmico dos mais complicados: o que a história pode dizer de seguro sobre a vida terrena de Jesus. A conclusão de Bento XVI é que os Evangelhos trazem um retrato mais claro e convincente de Cristo do que qualquer obra histórica moderna, revelando que Jesus sempre esteve consciente de sua natureza divina.
No entanto, para os especialistas que estudam o chamado "Jesus histórico", a interpretação papal não faz jus à maneira complexa como a figura de Cristo foi emergindo. Para eles, igualar Jesus a Deus foi um processo lento, e a idéia provavelmente não aparecia nem na pregação original do próprio Cristo.
Verdade seja dita, "Jesus de Nazaré" está longe de ser apenas um livro sobre o Jesus histórico. "Apesar do título, trata-se de um texto marcadamente teológico", avalia André Chevitarese, historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na maior parte do tempo, Bento XVI está preocupado em mostrar como a trajetória de Jesus e sua personalidade são relevantes para o cristão de hoje.
Ao mesmo tempo, ele quer deixar claro qual a maneira teologicamente correta de enxergar a pessoa de Jesus, diante do que vê como deturpações nas quais ele aparece como um homem como qualquer outro.
"Não é mais lógico, até do ponto de vista histórico, que a grandeza se coloque no início e que a figura de Jesus tenha gerado, na prática, uma superação de todas as categorias disponíveis, podendo ser compreendida somente a partir do mistério de Deus?", questiona o Papa. Em outras palavras, a preocupação central de Ratzinger é com a cristologia - o termo usado pelos teólogos para o estudo da figura e da pessoa de Jesus.
"Com certeza esse é um dos elementos centrais no pontificado dele", declarou ao G1 o vaticanista americano John Allen Jr., autor de duas biografias sobre Bento XVI. "Por exemplo, as pessoas interpretaram uma advertência recente feita ao teólogo Jon Sobrino [seguidor da chamada teologia da libertação, de orientação esquerdista] como uma nova tentativa de enquadrar a teologia da libertação.
Mas essa advertência não teve nada a ver com a teologia da libertação e tudo a ver com o que o papa considera uma cristologia errada", diz Allen Jr. E isso porque Sobrino, em seus escritos, dá ênfase à natureza humana de Jesus - para o Papa, uma visão errônea.
No centro da argumentação de Bento XVI está o Evangelho de João, a quarta narrativa sobre a vida de Jesus na Bíblia cristã. Nele, Cristo é apresentado como o Verbo (ou Palavra, tradução do grego Lôgos), uma entidade divina existente antes da criação do mundo. Em outras passagens do mesmo texto, Jesus se apresenta como igual ou equivalente ao "Pai" (Deus).
Como o Evangelho de João também afirma derivar do testemunho de alguém que presenciou a vida de Jesus, Ratzinger conclui que as afirmações de Jesus sobre sua intimidade com o próprio Deus foram realmente ditas por ele durante sua pregação na Palestina. O Papa defende que a testemunha ocular por trás do texto seria João, filho de Zebedeu, um dos doze apóstolos.
"Sempre acontece esse problema quando um teólogo dogmático vai analisar os textos do Evangelho. Ele vai optar por dizer que não há ruptura entre os vários textos, que todos eles dizem sempre a mesma coisa", diz Luiz Felipe Coimbra Ribeiro, professor de literatura bíblica da Faculdade Evangélica de Brasília. No entanto, a análise do próprio Evangelho de João mostra que ele pode ser o resultado de um processo gradual de pensamento teológico, que foi progressivamente dando a Jesus essa feição divina.
"Um exemplo disso é que a imagem de Jesus como o Verbo de Deus só aparece no prólogo do Evangelho, sumindo do resto do texto. Por isso, é possível defender que ele seja uma interpolação [inserção] posterior, assim como outros capítulos de João", explica André Chevitarese. Mais importantes ainda são as diferenças profundas de linguagem e temática entre João e os demais evangelistas (Mateus, Marcos e Lucas).
"É praticamente consenso hoje que o apóstolo João não pode ter sido o autor. Para um Evangelho escrito por testemunhas oculares, chama a atenção que o tema do Reino de Deus, elemento central no anúncio de Jesus, praticamente não apareça. A mesma coisa pode-se dizer das parábolas", explica Emilio Voigt, doutor em Novo Testamento e coordenador de ensino à distância da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (RS).
Os pesquisadores também interpretam uma série de referências à expulsão dos seguidores de Jesus das sinagogas judaicas como um sinal de que esse Evangelho foi escrito numa época em que cristãos e judeus tinham sofrido uma separação religiosa total - provavelmente no ano 90 da nossa era, ou cerca de 60 anos após a morte de Cristo.
Se a hipótese for verdadeira, isso significa que o Evangelho de João foi o último a ser concluído. O interessante, afirma Chevitarese, é que os outros textos do Novo Testamento parecem mostrar a convivência de várias visões sobre como e quando os cristãos consideravam que Jesus teria assumido seu status de Cristo, ou seja, de "ungido" (escolhido) e filho de Deus. "Para Paulo [autor dos textos provavelmente mais antigos do Novo Testamento, datados por volta do ano 50], Jesus é o Cristo porque ressuscitou.
O Evangelho de Marcos traz esse papel já para o batismo de Jesus feito por João Batista. Os Evangelhos de Mateus e Lucas recuam isso para o nascimento dele, enquanto João vê Cristo como preexistente ao próprio mundo. São quatro cristologias diferentes convivendo num espaço de 50, 60 anos", avalia ele.
Num ponto, porém, o pesquisador da UFRJ diz que o Papa tem razão em criticar certas reconstruções históricas sobre Jesus. Alguns especialistas influentes, como o irlandês John Dominic Crossan, traçaram recentemente uma imagem de Jesus que se assemelha mais a de um filósofo influenciado pelos gregos, um reformador social ou revolucionário que não dava importância ao lado místico da religião. Bento XVI diz que essas reconstruções são mais um reflexo da ideologia de seus autores do que do próprio Jesus.
"De fato, acho que isso equivale a esvaziar Jesus", afirma Chevitarese. "Não se pode tirá-lo do seu contexto judaico nem eliminar seu lado apocalíptico e escatológico [o de um profeta que espera o final dos tempos e a consumação da história humana]", diz o historiador da UFRJ.
Por outro lado, talvez Bento XVI cometa o exagero oposto ao retratar um Jesus que vê sua missão apenas como a transformação interior das pessoas, sem a busca por justiça e paz que também caracterizava os profetas judeus. "A própria escatologia judaica também tem um substrato político", lembra Luiz Felipe Ribeiro. Ele cita um exemplo cristão, o Apocalipse, que pode ser lido tanto como uma previsão do fim do mundo quanto um ataque contra a opressão romana que afetava os cristãos.
Ribeiro avalia que, como judeu, seria impensável para Jesus se colocar publicamente como igual a Deus. "Agora, isso não quer dizer que não houvesse uma autocompreensão de Jesus na qual ele se via como mais do que humano, uma autocompreensão messiânica, digamos."
Seria essa uma das possíveis explicações da misteriosa expressão "Filho do Homem", aparentemente empregada por Jesus para designar a si mesmo. Esse personagem aparece em vários escritos apocalípticos judaicos, muitos dos quais surgidos pouco antes do nascimento de Cristo. "Mas nem mesmo ali o Filho do Homem é igual a Deus - ele é mais um vice-regente, um segundo em comando", afirma Ribeiro.
Descontado o consenso entre os estudiosos do Jesus histórico, seria possível argumentar que o papa não teria muita escolha se não reforçar a imagem divina de Jesus, já que o dogma católico afirma que Cristo era ao mesmo tempo homem e Deus. No entanto, o teólogo irlandês Joseph O'Leary, da Universidade Sophia, no Japão, afirma que é possível conciliar as descobertas sobre o Jesus de carne e osso com o que a fé católica ensina.
"Nós não somos obrigados a achar que Jesus estava ciente de sua divindade [de forma explícita]: essa falta de conhecimento claro pode ser atribuída à natureza humana dele, que está unida mas não misturada à sua natureza divina", diz O'Leary. A julgar pelos textos cristãos mais antigos, argumenta ele, teria sido a Ressurreição de Jesus o evento responsável por fazer os primeiros cristãos começar a compreender a verdadeira face de Cristo. Assim, não seria necessário dizer que, enquanto vivo, ele tivesse se declarado divino.
"Bastaria mostrar que Jesus tinha a percepção de uma união íntima e única com o Pai. Isso traria uma base respeitável para a continuidade com a experiência da Ressurreição. Talvez isso não possa ser 'provado' também, mas se encaixaria bastante bem com as probabilidades históricas", conclui O'Leary.
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